domingo, 1 de junho de 2008

O Papel é Mais Paciente que o Homem - Parte I


Nesta semana o "Em Linhas..." completará 1 ano de vida. E para comemorar esta data tão especial, publicarei um conto com quatro partes que serão postadas de hoje até o dia 4, que mostra o que um simples desabafo no papel pode provocar na vida de uma pessoa, especialmente quando esse belo desabafo envolve o seu “querido” patrão...

Divirta-se, e acompanhe essa seqüência que promete...


Abriu a porta com fúria, fechando-a em seguida. Sentou em sua mesa, espumando de raiva.

Afonso viu o amigo Marcelo visivelmente nervoso. Não precisou pensar muito. Foi mais um daqueles dias em que levara esporro do seu patrão, Seu Gomes.

Seu Gomes era um senhor de idade. Beirava os sessenta anos, mas a sua expressão enrugada e com pesadas olheiras lhe adicionavam mais dez anos de idade. Era gordo, usava habitualmente terno e gravata, mas com a sua pressa e a sua ansiedade sempre à flor da pele, suas calças nunca paravam no lugar, e a sua gravata vivia torta e mal colocada. Por isso, já era hábito vê-lo ajeitando as calças e/ou a gravata de dois em dois minutos. Já era administrador daquele setor há cerca de cinco anos, mas seu tempo de empresa já ultrapassava os vinte. Sentia-se o máximo em seu cargo, ainda mais quando o gerente geral exaltava as suas qualidades ou as qualidades do departamento.

- Aquele imbecil não vale nada. Você acredita que ele simplesmente se recusou a ouvir o projeto que eu fiz, dizendo que quem era pago para pensar era ele e eu era só pago para obedecer?

- Imagino. O seu Gomes é casca dura, acha que só ele é que deve pensar. Mas relaxa, cara, não fica assim não...

Era o que ele sempre dizia ao amigo nessas horas. Por mais que detestasse aquele emprego e principalmente o patrão, Marcelo tinha muita vontade de trabalhar, e era uma mente criativa dentre todos que trabalhavam naquele setor.

- Aquilo ali é inveja. – dizia ele. – Ele tem medo de eu roubar o cargo dele. Essa é que é a verdade. Ele sabe que eu tenho mais competência que ele. Se você soubesse como eu fiquei na hora que ele falou aquilo... Deu vontade de falar tudo aquilo que tá engasgado na minha garganta, puta que pariu...

- Não fica assim não rapaz, faz que nem eu, em vez de ficar por ai batendo porta, xingando o chefe e com coisa engasgada só zoando com a sua saúde, porque você não pega um papel e começa a descarregar tudo que você queria falar pra ele?

- Descarregar? No papel? Em linhas?

- Sim. É melhor do que ficar espumando aí como você tá... Às vezes eu faço isso também. Foi um psicólogo que me recomendou quando eu tive aquela crise de stress. Não conhece aquele ditado que diz que o papel é mais paciente que o homem?

- Sei...

- Então. Faça isso, cara. Você vai ver como vai se sentir melhor...

Marcelo franziu a testa. Nunca tinha pensado nisso. Soava até meio que infantil para ele. Ele já tinha feito isso algumas vezes quando era adolescente, naquela fase em que os nossos conflitos viram linhas, em versos, diários ou em frases pequenas de caderno de escola. Mas já fazia muito tempo que ele não desabafava dessa forma.

- Não é uma má idéia...

***
- Pronto. Terminei.

- Posso ler?

- Pode mas lê só com os olhos.

- Beleza.

E então, Afonso começou a ler o papel.

“Querido senhor Gomes,

Venho através desta lhe confessar o quanto admiro o seu trabalho e especialmente, o quanto a empresa conseguiu ser tão burra o suficiente para pagar um salário generoso a um velho que mal sabe arrumar as próprias calças. Obvio, quem sou eu pra discordar da gestão da nossa querida empresa, mesmo que ela tenha tomado a atitude de contratar cavalos no lugar de seres humanos para setores onde seus funcionários parecem ter mais inteligência do que o seu próprio administrador. Mas tudo bem senhor Gomes, o aquecimento global está acabando com o nosso planeta, e entendo que animais selvagens como o senhor precisem de uma ajuda para sobreviver, por isso, fique tranqüilo, eu não quero roubar o seu cargo ou a sua mulher, se bem que pelo seu jeito, duvido que você ainda lembre o que é ter uma mulher, com essa cara de tangerina podre que você tem.

Pois bem senhor Gomes, diante disso tudo, apenas peço que preste mais atenção nos projetos que eu for lhe apresentar, porque não os faço para agradar o senhor, e sim porque além de querer o bem estar do nosso setor, eu não perco o meu tempo mostrando quem é que manda por aqui.”

Um abraço carinhoso de seu funcionário pago para obedecer,

Marcelo


- Nossa cara, tangerina podre foi o pior!!!! – exclamou Afonso rindo.

- Psst! Fala baixo, quer que ele escute?

- Foi mal... mas meu, você escreveu isso como se realmente fosse algo direto pra ele. Ficou ótimo. Até eu me senti vingado! Mas e aí, você se sente melhor?

- Se eu me sinto? Nossa, acho que vou fazer isso todos os dias. Vou pegar... fazer essa carta... dobrá-la e guardá-la todos os dias só pra me divertir um pouco quando quiser rir da cara dele.

- Espera aí, você vai jogar fora né? Ou pelo menos não vai deixar isso guardado por aqui?

- Porque você tá falando isso? Você acha que alguém vai ler isso aqui ou que vai chegar aos ouvidos do chefe?

- Não sei mas se eu fosse você não arriscava.

- Relaxa. Todo mundo aqui odeia ele, fora que essa carta vai ficar bem guardada. Mas jogar fora eu não jogo nem em sonho. Foi a minha maior obra prima dentro dessa empresa.

- Tá bom, você é quem sabe, mas cuidado. Você mesmo me falou outro dia que tá endividado até o pescoço e não pode nem sonhar em perder esse emprego.

- Nem me fale. Mas pode ficar tranqüilo, ela está em boas mãos.

E de repente, para a surpresa dos dois. Seu Gomes entrou na sala, sem bater como de costume. Seus olhos carrancudos pareciam a todo momento uma arma mirada para quem ele olhava, pronta para disparar o primeiro tiro.

continua...


FOTO: http://franklincarlos.files.wordpress.com/2008/03/raiva.jpg

4 comentários:

Cesar disse...

bem que pudia por tudo em um post

sou viciado em contos XD

ansioso para a proxima parte

abraaço!

Euzer Lopes disse...

Vamos esperar a próxima parte, porque nessas horas, a cara que se faz é a de entrega total...

Unknown disse...

As vezes escrever lava a alma, mas, segredo não é para ser contado..rs..vem coisa por aí, vou aguardar as continuações.


Coerência Contraditória
...em busca de respostas através do conhecimento...
http://coerenciacontraditoria.blogspot.com

Gi Olmedo disse...

5 anos depois eu venho aqui... rs!pode brigar comigo.
nada como o papel e as linhas p/ expressar nossa raiva. Acompanho as continuações.
Beijos!