segunda-feira, 30 de junho de 2008

O Homem do Sonho


Hora de dormir. Finalmente! Depois de um dia exaustivo, repleto de pessoas mau humoradas, de chefe mau humorado, de trabalho intenso no escritório, de congestionamentos por todos os lados, discussões, barulhos de automóveis, furadeiras, tratores, buzinas, ar-condicionado, anúncios nos alto-falantes, de sirenes de carros de polícia, bombeiros, ambulâncias... e mais uma infinidade de coisas que só de lembrar já lhe davam irritação.

Alfredo era o herói, enfrentava esse caos todos os dias. Estava exausto, cansado a ponto de fechar os olhos. Chegou em casa, conversou sério com sua esposa sobre o que havia acontecido naquele dia, tomou um bom banho para lavar a alma, jantou, assistiu um pouco de televisão e recolheu-se na cama. Era só relaxar, esquecer o resto do mundo, e entrar no mundo confuso dos sonhos.

- Boa noite amor! Não fique assim não. O importante é que já passou. – disse Helen, sua esposa.

- Eu sei. Durma com os anjos! Eu também vou procurar descansar. – murmurou ele, dando-lhe um beijo carinhoso na boca.

Dormiram. Que milagre o vizinho não ligara o som do carro naquela hora da noite! Era uma benção! Então, já que a noite estava silenciosa, Alfredo teve a certeza: aquela noite seria a ideal para recarregar de verdade todas as suas energias gastadas durante o seu dia. E mais do que nos outros, naquele dia ele realmente estava precisando descansar.

“Como é bom estar na minha cama... sossegado... no silêncio... com a minha mulher...zZzZzZ”

Porém, de repente, ouviu-se um grito vindo do quarto ao lado.

- Não, não, não me machuque, não machuque o meu pai, por favor! Não! Socorro, socorro!

Era Lucas, seu filho, quatro anos, que mais uma vez estava tendo pesadelos.

Pai e mãe acordaram. Alfredo se levantou, pediu para Helen dormir, que ele vai ver o que houve com Lucas. O menino continuava gritando. Alfredo se apressou até o quarto. Chegando lá, viu o garoto desinquieto, virando de um lado para o outro da cama. Estava tendo um pesadelo.

- Psiu, calma filho! O papai ta aqui! Isso, calma, já passou, já passou...

O menino acordara assustado. Que pesadelo horrível! Abraçara o pai com toda força, como se aquele homem fosse o herói, o que acabaria com o vilão do pesadelo. Alfredo o abraçou, o acalmou, esperou que aquele pobre coraçãozinho recuperasse os batimentos normais.

- Pai, ele era horrível, ele queria eu, ele queria o senhor...

Pobrezinho, sonhando com o velho e conhecido bicho papão...

- Filho, o bicho papão não faz mal a ninguém, é só um pesadelo!

- Bicho papão? Não pai, bicho papão não tem arma...

“Arma? Ele sonhou com arma?”

- ...era um homem feio, que gritava, berrava, falava um monte de palavrão!

- E o que ele fez, filho?

- Ele veio pro nosso carro e gritou com o senhor. Pediu dinheiro e o senhor disse que não tinha. Daí ele apontou aquela coisa na sua cabeça e depois apontou pa minha. Eu gritava para ele não matar o senhor!

Alfredo ficou estático.

- Puxa filho! Que sonho horrível! Vamos esquecer isso. Vamos lembrar só dos sonhos bons certo?

- Tudo bem pai! Mas não sei se vou conseguir dormir de novo! Posso dormir com o senhor?

- Claro meu filho! O papai dorme abraçado com você para espantar os pesadelos!

- Oba!

- Vem comigo. Cuidado para não acordar a mamãe.

E caminhavam pelo corredor, até que Lucas pára.

- O que foi? Por quê parou?

- Pai, aquele homem não existe de verdade, né?

Alfredo ficou calado. O menino já estava tão assustado com o homem! Temia que se falasse a verdade, ele não conseguiria mais dormir, e tirar isso da cabeça também.

- Não filho, é coisa da sua imaginação. Vamos dormir, já é muito tarde, ok?

O menino sorriu. Pelo menos essa noite ele não iria ter problemas para dormir.

Subiu na cama com ele. Ele no meio, e Alfredo na ponta. Embrulhou-se com o lençol. Abraçou Lucas e deu-lhe um beijo na testa. E então, sob a proteção calorosa dos braços do pai, o menino fechou os olhos e pegou rapidamente no sono. Já Alfredo, mesmo com todo o silêncio que agora pairava no quarto, percebeu que seria uma noite muito difícil de dormir...

Alfredo sabia, e muito bem, que aquele homem existia. Tinha o visto hoje de manhã.

São Paulo, agosto de 2002

FOTO: http://alerta.blogspot.com/2007/09/ultimamente-o-nmero-de-assaltos-tem.html

domingo, 22 de junho de 2008

Os Jogos Violentos


No domingo dia 25-05 vi uma reportagem no Fantástico sobre alguns jogos de violência que tiveram o seu comercio proibido no Brasil. Estão entre eles, Counter-Strike e Everquest.

O motivo é que, segundo o Ministério Público, eles incentivam o uso da violência podendo gerar até uma série de deturpações psicológicas para o jogador, induzindo-o inclusive a cometer crimes. Normalmente são jogos onde o jogador tem que matar para ganhar pontos, e geralmente os modos utilizados vão desde a armas potentes até ao uso da própria força, transformando o alvo em puro sangue, carne viva e muitas vezes mutilada. E quanto mais se mata, melhor, mais pontos se acumula.

Não é de hoje que jogos violentos são motivo de polêmica na sociedade. Lembro-me quando quiseram proibir a circulação do inesquecível Mortal Kombat, justamente sob o mesmo argumento de incentivo à violência. E assim sempre foi até os dias de hoje, onde os jogos são cada vez mais sofisticados com os seus gráficos bem elaborados e trilhas sonoras que nos fazem até gravá-las no MP4 para ir ouvindo no caminho do trabalho, e alguns tão próximos da realidade que chega a nos deixar de boca aberta.

Desde pequeno eu jogo esses jogos violentos, e desde pequeno conheço pessoas que jogam e adoram esses jogos violentos. E nem por isso eu saio por ai matando todo mundo e nem conheço, pelo menos até agora, alguma pessoa que tenha se influenciado dessa forma e praticado algo do tipo.

Há jogos que eu até concordo que devem ser banidos como aqueles que incentivam o bullyng (agressão psicológica violenta, tipo um aluno na escola que sempre é alvo de fortes humilhações), o racismo e qualquer tipo de preconceito.

Mas cá entre nós, se um pai adora um jogo violento e joga na frente do filho, obvio que ele vai se interessar também. Se ele mora num bairro violento, se assiste a filmes de ação violentos, se toda hora que liga o jornal é um caso de morte aqui, de homicídio ali, de atentado terrorista acolá, ou pior, se há casos de violência dentro de casa, será que proibir certos jogos faria alguma diferença na vida dele?

Não adianta, não se cortará a violência dessa forma. O que precisa se fazer entender é que jogo é jogo, vida real é vida real. Às vezes é bom jogar algo violento apenas para descarregar o stress do dia a dia, e ali sim é o lugar, afinal, você tem na cabeça que aquilo tudo é só um jogo, que nenhum sangue derramado é de verdade e que qualquer boneco que tenha morrido decepado, basta sair e entrar no jogo que ele estará lá novamente, e você não estará fazendo mal à ninguém de carne e osso, estará apenas se divertindo.

A classificação indicativa também é uma ótima maneira até dos pais (os primeiros responsáveis pelo acesso do filho ou não a eles) para que possam controlar e orientar melhor o que os seus filhos andam jogando.

Acho que as autoridades deveriam abrir mais a cabeça e utilizar métodos mais eficazes. Podem ter proibido esses jogos, mas pode ter certeza de que eles continuarão sendo vendidos por aí, e jogados livremente.

E nós sabemos que quando se proíbem coisas assim, aí é que ela vira o centro das atenções, ainda mais quando sua circulação não é efetivamente controlada.

Não precisa pensar muito sobre o porque desses jogos com histórias “realistas” fazem tanto sucesso. Diferente daqueles jogos com monstros e outras ficções, eles simplesmente retratam uma realidade que já existe há muito tempo, quando sequer o Atari existia.

Sendo assim, se a Justiça acha que proibir a venda desses jogos vai mudar alguma coisa, então que aguardem a resposta do tempo, sentados em suas cadeiras ao invés de se preocupar com coisas mais importantes.


FOTO: http://neuralgames.files.wordpress.com/2007/10/violent-games-hb3004-bill.jpg

Em Linhas... Retrô


Se puder, comente.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Eu Sinto

Eu sinto...

Haverá uma certa lua cheia
Que me jogarei no chão junto com meus fantasmas
Todos eles irão rir de mim no inicio
Mas ao ver que estarei me jogando de verdade
Todos eles irão se desesperar
Começarão a se debater a ponto de querer me segurar
Mostrarão todo o meu passado
Repetirão as palavras que já tacaram em mim
Repetirão as vezes que não respondi à altura
E todas as vezes que eu errei
Mas ao perceberem que é um caminho sem volta
Ai sim é que irão mostrar os meus feitos
Mostrar que os venenos que recebi fora obra deles
Que as luzes nunca saíram de mim
Que as estações continuam as mesmas
Mas foram eles os culpados pelo meu tempo fechado
E por todas as bíblias dos meus conceitos que escrevi
Agora, meus caros, corram atrás do prejuízo
Porque no dia em que meu eu se transformar em cacos
Vocês irão juntos comigo para o nada
E então, por mais que queiram se redimir e abrir de verdade os meus olhos
Eles já estarão usando óculos escuros
E daí por diante, serei uma metralhadora descontrolada
Cujo estrago provocado será tão grande
Que se abrirá uma fenda a cortar as limites entre a lucidez e a loucura
E acabarei sendo útil apenas para as noticias de jornal.

Eu sinto... muito.

FOTO: http://blog.br.inter.net/blog/guerreirodaluz/blog.br.inter.net/images/espinhos.jpg

Em Linhas... Retrô:


Se puder, comente.

sábado, 14 de junho de 2008

Delírio - Ser e Ter


Ter um carro importado
Ter um tênis da moda
Ter um nome importante
Ter um curso superior
Ter um pai advogado
Ter um filho celebridade
Ter um corpo bonito
Ter um bom emprego
Ter um rosto bonito
Ter um cargo importante
Ter uma bela mansão

Ser bom
Ser amigo
Ser honesto
Ser digno
Ser trabalhador
Ser sorridente
Ser otimista
Ser altruísta
Ser ponderado
Ser precavido
Ser correto

Ter cor
Ter sabor
Ter abraço
Ter beijo
Ter luz
Ter um abraço
Ter um ombro
Ter um laço
Ter um passo
Ter um sonho

Ser rico
Ser famoso
Ser ambicioso
Ser trapaceiro
Ser gostoso
Ser ligeiro
Ser durão
Ser importante
Ser requisitado
Ser superior
Ser esperto

Ter sonhos
Ser sonhos

Ter coração
Ser coração

Ter muito
Ser muito

Ter tudo
Ser tudo

Ter nada
Ser nada

Nada ser e tudo ter
ou
Tudo ser e nada ter?

Ser vale mais do que ter


Mas a errante certeza daqueles que olham o mundo com olhos feitos pelas mãos do seu próprio veneno:

Ter vale mais do que ser

Mas olhando certo e com lentes de contato bem iluminadas:

Ser humilde vale mais do que ter ganância.
Ter educação vale mais do que ser mal-educado.
Ser lutador vale mais do que ter tudo na mão,
E ter sonhos vale mais do que ser acomodado.

Ter que ser rico
Ter que ser famoso
Ter que ser forte
Ter que ser formado
Ter que ser esperto
Ter que ser casado
Ter que ser livre
Ter que ser trabalhador
Ter que ser honesto
Ter que ser responsável

Não importa o que tiver que ser
Sendo importante tê-lo na sua vida
É o que vale a mais a pena ter.
Cada sonho, cada gesto,
É só ser esperto e ter a certeza:
O que tiver que ter, terá
E o que tiver que ser, será.


Foto: http://atuleirus.weblog.com.pt/arquivo/formiga.jpg

Em Linhas... Retrô:

Se você não leu, clique no link e conheça, e pra você que já leu, leia e compare com o que você comentou há um ano atrás. Será que hoje dirias o mesmo? rs

domingo, 8 de junho de 2008

Em Linhas... 1 ano!!!

Há algum tempo eu já queria postar esse texto, mas os imprevistos não deixaram, me fazendo postar só hoje, mesmo quase dormindo no micro, devido a uma gripe que quer me pegar.

Na quinta-feira, dia 05, o "Em Linhas..." completou um ano de vida.

Ele é um resultado de um desejo que sempre tive em ter um espaço meu onde pudesse escrever, desabafar, soltar o meu veneno, criticar, contar e proporcionar a quem o visita entretenimento com conteúdo, ou que pelo menos, fosse algo aproveitável...rs

Peguei um terça-feira em que estava de folga para montar esse espaço. Montei o layout após ficar horas mexendo e remexendo (como todo bom virginiano, sou um perfeccionista a ponto de irritar a mim mesmo...rs), e por fim, terminei nomeando (também após tentar vários nomes). Ainda postei dois textos que faziam parte de um antigo blog que tinha mas não deu certo, chamado Toca das Letras. Os dois textos, um chamado “A Violência no Brasil... E Daí?”, e um pensamento chamado “A Fonte D’água”, foram o começo de uma demanda que já alcançou cerca de 77 postagens, contendo de tudo um pouco.

Mas vou ser sincero, o meu maior orgulho foi ter criado os Delírios, textos inspirados no Modernismo e em algumas músicas piradonas de “Os Mutantes”, que possuem uma maneira diferente (algumas vezes até agressiva) de expor um certo assunto. Você só não , como também o sentimento exposto ali.

Também postei alguns textos que já tinha escrito há algum tempo, como o conto “Tem Um Carro Me Seguindo”, de 2005, e o poema “Aprendendo com o Sofrimento”, escrito em 2000.

O blog também já apresentou temas de forma polêmica. O poema “Portugueis”, uma sátira ao nosso português errado de cada dia, foi um grande exemplo disso, onde teve até leitor criticando ferozmente comentário de outro leitor, e um debate praticamente político que rendeu...

Teve também os textos de caráter sombrio, postados na categoria “Tempestades”, refletindo as tempestades por que já passei nesse tempo.

E por fim, textos a la sessão nostalgia, como o “Sessão Nostalgia 1” e o “Sessão Nostalgia 2”, um com aberturas de desenhos famosos, outro com comerciais antigos. Teve também um chamado “60/2000”, que falava sobre esse clima de adoração de tudo do passado e ao mesmo tempo da subestimação de tudo que se refere á nossa década atual.

É claro que, ao ver esse blog hoje, percebi que a crítica é a sua principal vitamina, que dá sustento á tantas postagens e a tantos jeitos diferentes de escrever.

Acredito ter alcançado o meu objetivo nesse 1 ano: fazer dessas linhas um divã, não só meu, mas de você também leitor, que parou alguns de seus minutos para ler as abobrinhas e pirações desse rapaz que deseja ser um jornalista. Espero ter contribuído com o seu dia, ter tirado do fundo do seu coração algo que você queria dizer mas estava engasgado na garganta, ou apenas para matar a saudade de algo que fez parte da sua infância, ou treinar o seu espírito critico e consciente que rege os seus caminhos.

Não posso terminar esse texto sem agradecer a leitores que estão aqui desde o começo, como o grande mestre R Lima e seu “O AveSSo da Vida”. Sabes que as suas palavras, o seu incentivo, desde o outro blog, sempre me fizeram muito bem, e como eu já comentei até em uma postagem sua, o seus textos sempre foram referência para mim. Você também é um dos responsáveis por esse aniversário.

Também agradeço ao Diego Moreto, do blog de mesmo nome, que sempre que pode aparece por aqui, deixando seus comentários tão inteligentes.

Também agradeço a você, Pequena Gi do "Sede de Devaneios". Sei que sua vida anda muito corrida, mas também sempre que pode dá o ar de sua graça pelas postagens.

E, tentando me lembrar de todos, obrigado ao Vicente Freitas, a Fada, a Mila, ao Euzer, a Paloma, ao Amnésico, ao Soul Music, e a todos que também fazem parte dessa história.

E obrigado também por todos os selos e prêmios, todos que recebi de maneira inesperada, e coincidência ou não, quando me encontrava desmotivado com o blog.

A todos vocês, podem ter a certeza, terão o meu crédito sempre que eu puder, pois vocês todos são mestres no que fazem, cada um com o seu estilo, cada com o seu modo de pensar.

E por fim, agradeço de coração a você leitor dessa postagem, seja novo por aqui, seja já de casa, mas pode ter a certeza de que esse rapaz que ama a arte de escrever o faz com gosto e satisfação, e mesmo agradecendo todos os elogios e críticas, sabe que ainda tem muito o que aprender.

Mas, essas linhas não terminam por aqui...

Por isso, até a próxima postagem.

Tenha uma ótima semana.


FOTO: http://193.126.122.175/Newvision/portallizer/upload_img_conteudos/estrada_5_web.JPG

quinta-feira, 5 de junho de 2008

O Papel é Mais Paciente que o Homem - Parte IV - Final

Peço novamente desculpas por estar postando só hoje. Ontem pareceu ser o dia dos imprevistos... mas tá aqui, o último capítulo, tá meio longo, mas eu garanto que ao ler você nem vai perceber que terminou, ou mesmo que perceba, não vai se arrepender...

Sala de reunião. Normalmente, quando a equipe era convocada para essas reuniões com seu Gomes, sempre para lhes dar algum sermão, pairava naquela sala um clima de “O Aprendiz” da Tv Record, bem naquele momento em que os participantes aguardam a entrada de Roberto Justus. Mas lá não, o clima estava tão descontraído, mas tão descontraído, que a reunião parecia mais uma confraternização. O motivo?

- Nossa, tangerina podre... KKKKKK.

- Eu sinceramente não queria ver a cara do seu Gomes hoje... Não vou conseguir me segurar quando ver a cara dele e aquele mania de ajeitar as calças...KKKKK

Era só o assunto. Finalmente, alguém falara palavras “sábias” e verdadeiras sobre seu Gomes. Marcelo apenas observava aquela cena, todos comentando do papel, todos comentando dele, todos fazendo fofoca sobre o ato de Marcelo, e principalmente, onde estaria o tal papel, já que Dona Maria, a faxineira, espalhou o papel suspeito que entregara a seu Gomes e a sua reação após recebê-lo.

- Nossa... Nunca pensei que causaria tanto nessa empresa com esse papel... – sussurrou a Afonso. – Acho que falei demais. Já tão inventando coisas que eu não escrevi. O que eu fiz cara... Devia ter tomado mais cuidado com aquele papel... Eu nem sei o que vou fazer quando o seu Gomes esfregar ele na minha cara aqui, na frente de todo mundo...

- Relaxa. Qualquer coisa a gente inventa que foi intriga de alguém, sei lá. Mas não fica assim não, a gente ainda não tem certeza se é mesmo o seu papel o não. Apesar que tudo indica que sim, né...

- Obrigado pelo ânimo...

E de repente, a maçaneta da porta foi brutalmente mexida. Silêncio. Por fim, ajeitando as calças, eis que surge seu Gomes, com a sua cara visivelmente cheia de olheiras, e também visivelmente furioso, com jeito de quem estava prestes e despejar coisas que estavam entaladas na sua garganta.

E com um sorriso irônico, soltou:

- Boa tarde.

- Boa tarde. – todos responderam, apreensivos.

- Muito bem... Acho que já perco demais o meu tempo falando com vocês, por isso, irei ser o mais sutil possível sobre o que vim tratar nessa reunião. Na verdade, de inicio, era sobre um assunto só, mas nessa tarde ocorreu um certo fato muito infeliz que acabou entrando na pauta, portanto, senhoras e senhores, iremos tratar sobre dois assuntos importantes.

Marcelo sentiu um frio a percorrer o seu corpo.

- Ontem o gerente geral me chamou a atenção para o comportamento da nossa equipe, coisas fúteis como questão do lixo, conversas altas no corredor, assuntos inapropriados para o ambiente de trabalho e até mesmo problemas no visual como barba por fazer, vestimentas não adequadas ao que diz as normas da empresa, e outros fatos que me deixaram profundamente abalado. Afinal, vocês acham que estão aonde? Na casa de vocês? Num zoológico? É muita falta de postura e profissionalismo por parte de vocês! Há muito tempo já deveriam ter seguido o meu exemplo como profissional há quase vinte e cinco anos aqui dentro...

E ficou, por longos trinta e seis minutos discutindo sozinho sobre questões de postura dentro do ambiente de trabalho, fazendo comparações infelizes e citando nomes de funcionários na frente dos outros, deixando-os constrangidos. Com o tempo, aquele sermão foi dando sono a muitos que estavam ali, mesmo aos berros roucos que seu Gomes emitia, entre uma arrumada de calça e uma arrumada de gravata que ele vivia fazendo. E Marcelo permanência trêmulo, distante, apenas pensando no próximo assunto...

- E é isso senhoras e senhores “não-colaboradores”. Agora, vamos ao segundo assunto que vim tratar hoje. Estava eu em minha sala, me preparando para o que ia dizer referente a essa reunião, quando a faxineira na qual sempre me esqueço o nome vem a minha sala e me entrega este papel aqui...

E tirou o papel do bolso, exibindo as suas costas, a parte com o logotipo da empresa, para todos os presentes naquela mesa. Todos olharam para Marcelo, que ficava cada vez mais pálido, e em seguida voltaram a olhar para seu Gomes, disfarçando ao máximo os seus sorrisos.

- Nunca pensei em vinte e cinco anos de empresa que viveria uma situação tão constrangedora como essa! Um absurdo! Uma vergonha! Uma...- e mordeu os lábios, resolvendo não dizer. – Alguém tem algo a dizer sobre isso?

Silêncio absoluto. Afonso, como bom amigo, deu discretos tapas nas costas de Marcelo, que á esta altura, já sentia o seu corpo todo tremendo.

- Ninguém? Então tá... já que ninguém se manifestou, então vou escolher a pessoa certa para falar sobre esse assunto, não é mesmo, senhor MARCELO?

Susto. Olhares sobre o dito cujo. Marcelo olhou para seu Gomes, que com seu olho que mais parecia uma arma mirando sobre ele, continuou:

- O que o senhor tem a me dizer sobre isso aqui?

Já era tarde. Pelo jeito, era mesmo o paepel. Não tinha mais como fugir. Falaria a verdade, ou inventaria a famosa desculpa, “armaram isso tudo pra mim”? Não, não ia colar. Seu Gomes pouco liga para os seus funcionários. Ele será mandado embora do mesmo jeito. O melhor era falar a verdade.

- Me desculpe seu Gomes, não foi a minha intenção denegrir a sua imagem. Na verdade estava chateado porque horas antes lhe apresentei um projeto de melhoria para o nosso setor e o senhor simplesmente se recusou a me ouvir, ainda dizendo que eu só era pago pra obedecer...

- Sei...

- E sinceramente, não acho justo dar esse tratamento a um funcionário que apenas quer dar o melhor de si, e o senhor pode ter certeza, essa sua postura arrogante colabora e muito para todas essas criticas negativas que o senhor mesmo acabou de citar aqui na reunião. Tome as providencias que o senhor preferir em relação a mim, mas eu não me arrependo de ter escrito esse papel desacatando o senhor. Foi apenas uma maneira que encontrei de descarregar aquilo tudo que estava entalado na minha garganta referente ao seu modo arrogante e repressor com quem tem tratado a mim e a todos presentes aqui na sala. O senhor pode ter o tempo que for aqui dentro, mas uma coisa, que, sendo sincero, o senhor ainda não aprendeu é que funcionário não deve só ser pago para obedecer, e sim para colaborar com a equipe dando o melhor de si. É isso.

Silêncio. Olhares assustados e fixados nos dois. Seu Gomes também estava mudo, sem reação, com os olhos ainda fitados em Marcelo. Balançou a cabeça, suspirou, e por fim, deu o seu veredicto:

- Você está certo, senhor Marcelo, não tiro a sua razão. Pode ter certeza que farei o possível para tratar a todos conforme a sugestão do senhor, desde que também façam a sua parte. Agora, vou lhe confessar uma coisa, estou chocado com esse papel que você me escreveu. Muito chocado! Onde ele está?

- Onde ele está? Ora, na sua mão.

- Isso aqui é apenas um relatório do desempenho da equipe. Aliás, era disso que eu ia falar. Não tinha visto ainda esse papel, e confesso que fiquei estarrecido com a nossa decadência em seis meses. Era isso que eu ia mostrar. Mas agora eu quero saber, onde está esse papel?

- Então... ele não estava com o senhor?

- Se estivesse acha que eu estaria perguntando?

Marcelo olhou para Afonso. Agora caíra a ficha. Além do papel não estar com seu Gomes, ele também não sabia de nada... até ali.

- Eh... o que o senhor ia falar mesmo sobre o relatório?

***
- Nossa, meu ouvido tá doendo até agora, cara. – disse Marcelo, enquanto arrumava as suas coisas em sua sala.

- Eu imagino. Pow cara, não sei nem o que dizer. Por causa de um papel aconteceu isso tudo. Ainda bem que ele não te mandou por justa causa, não é?
- Pois é, ele sabe que eu to certo, e ele percebeu o quanto a equipe anda insatisfeita com a gestão dele. Chega uma hora que até gente casca grossa feito ele percebe as coisas como são à sua volta. Mas eu não me arrependo de ter escrito aquele papel, não. Agora me sinto muito melhor, primeiro por ter descarregado tudo aquilo, e segundo, por ter falado na cara do seu Gomes o que ele precisava ouvir.

Era a hora da despedida, antes de passar pela última porta que um empregado demitido sempre passa, a do departamento pessoal.

- Valeu mesmo Afonso, obrigado por tudo.

- Que é isso. Amigos são pra essas coisas. E vê se não fura naquela pelada que a gente marcou no sábado á tarde hein!! Não quero perder o contato com você.

E deram aquele abraço de macho, contido, mas de coração. Em seguida, Afonso disse:

- Bem, sem emprego por muito tempo você não fica. O meu amigo vai te indicar lá onde ele trabalha. Ganha até mais do que aqui e o chefe de lá é muito gente boa. Já te dei o telefone né?

- Deu, tá aqui no bolso...- e começou a fuçar no bolso só para conferir.

Foi então que, de repente, Marcelo mudou de expressão. Ficara estático.

- O que foi, cara? – perguntou Afonso.

E de repente, Marcelo puxa junto com a anotação do telefone, um papel amassado, com o logotipo da empresa.

- Eu não acredito! – surpreendeu-se Afonso. – Isso...

E Marcelo abriu o dito cujo.

- Sim, é ele. Puta que pariu... agora que eu me lembrei. Teve uma hora que seu Gomes falou da reunião, e no nervosismo, quase que inconscientemente,e enfiei com tudo dentro do meu bolso, mas lá no fundão mesmo. Nesse nervosismo todo eu nem... Ah, mas deixa quieto. Agora já é tarde. Vou guardar esta obra prima como lembrança. Pelo menos agora eu to livre daquele imbecil. Bem, vou nessa então. Mais uma vez obrigado por tudo, amigo.

- Que é isso. Desculpa não poder descer com você, mas é que o seu Gomes me entupiu de tarefas hoje, alegando que eu precisava ter mais o que fazer... – disse rindo.

- Beleza então. Até sábado.

- Até sábado.

E Marcelo fechou a porta. Afonso, agora sozinho na sala, sentou em sua mesa, ligou o seu computador, e começou a mexer com as suas planilhas. Olhou para a mesa vazia ao lado.

Sim, Marcelo faria muita falta, muita mesmo...

- É, bem que o meu avô dizia, o papel é mais paciente que o homem...

E pelo resto do dia Afonso assim ficou: cheio de trabalho, mas rindo sozinho.

Obrigado, de coração, a todos que tiveram a paciencia de ler e acompanhar todos os capitúlos dessa história...

FOTO: http://www.yogainlasvegas.com/images/stress_one.gif

terça-feira, 3 de junho de 2008

O Papel é Mais Paciente que o Homem - Parte III


Para ententer melhor a história, confira as Partes I e II.


- O quê? Tangerina podre? Eu não acredito!!!! KKKKKKKK!!!

- Nossa!! Você é louco Marcelo!!! Mas pra falar a verdade, você poderia publicar isso na reunião!!! Ia ajudar e muuito no desempenho da equipe...AH AH AH AH AH AH AH!!

- Ai tadinho!! Tangerina podre não... Coitada das tangerinas, ao contrário do seu Gomes, elas fazem tão bem...HAUHUAHAUHAUHUA!!!!!

- Nada como ter o papel pra gente desabafar não é Marcelo? Adorei a idéia, também vou fazer isso quando ele fizer piadas do meu casamento. Aquele gordo ridículo merece muito mais do que isso.

Marcelo nunca havia se divertido tanto com seus colegas como dessa vez. Chegava a ser assustador o quanto as pessoas do departamento detestavam seu Gomes. Gente vítima de gritos, palavras injustas, piadas sem graça, humilhações e simplesmente, quando queriam apenas demonstrar o melhor de si, assim como Marcelo, foram pisados pela arrogância do velho.
Porém, para a tristeza de Marcelo, ninguém vira o tal papel.

- E agora Afonso? O tempo tá passando! Eu preciso achar isso antes da reunião.

- Sabe cara, me lembrei de uma coisa agora. A faxineira não passa por aqui por volta das duas da tarde? E se ela não passou e levou esse papel com ela? Era mais ou menos por esse horário que a gente saiu pra tomar água.

- Vamos falar com ela então.
***
- Como assim a senhora já sabe dona Maria?

- Ué, do tal papel que você escreveu pro seu Gomes? Nossa, isso virou o assunto do dia. Você escreve bem rapaz. Já pensou em trabalhar fazendo humor?

- Quem sabe, dona Maria, quem sabe, mas a senhora chegou a encontrar algum papel caído lá no corredor.

- Bem...

Expressão de suspense. Marcelo e Afonso olharam para a faxineira com apreensão. Dona Maria tinha uma noticia.

- Hoje eu passei mais ou menos nesse horário de sempre no corredor de vocês. Mas daí eu passei perto de uma daquelas portas e realmente achei um papel no chão. Só que na hora, sei lá, na dúvida, resolvi entregá-lo ao seu Gomes mesmo. Eu até achei estranho pela cara furiosa que ele fez quando leu aquilo. Mas você sabe, como eu não sou uma pessoa curiosa eu não me atrevi a perguntar o que era aquilo, senão era capaz de eu perder o meu emprego...

- M-Meu Deus. Afonso!!! Eu to na roça!!!! Ele...

- Calma!! Calma!! A gente ainda não tem certeza se foi esse papel que ele leu mesmo.

- Eu to vendo a cena, cara! Ele tá quieto, não falou nada até agora. Ele vai deixar pra expor isso na reunião... Meu Deus, eu vou ver mandado embora por justa causa...

- Calma seu Marcelo. Você não conhece seu Gomes? Ele é explosivo. Se fosse isso mesmo ele já teria vindo falar com o senhor. – disse dona Maria.

- Tá vendo? Vamos fazer o seguinte. Vamos terminar o nosso trabalho, e esperar a reunião...

- Já sei, Afonso!! Vamos lá na sala dele e recuperar esse papel.

- O quê? Você ficou louco? Ir na sala dele como? O cara agora tá lá. E pior, se for mesmo o seu papel, imagina se ele te vê ali, naquela sala, a sós...

- Vixe... não quero nem pensar. É... você tem razão. Mas e então, o que a gente faz?

- Vamos esperar a reunião. Como ele já vai discutir a postura na nossa equipe, então ele vai tocar nesse assunto. Se não tocar, é porque o papel não está com ele, beleza?

- Não sei não... Acho que a gente deveria procurar mais...

- A gente já procurou o bastante. E é como a dona Maria falou, ele é explosivo, se fosse isso, já teria falado com você antes.

- Droga! Porque que eu não dei logo um fim nesse papel...

- Eu avisei...

Marcelo o olhou com a cara feia.

- Não precisa jogar na cara. Eu sei disso, mas você queria que eu fizesse o que? Bem na hora que a gente tá falando do velho ele aparece...

- Tudo bem, desculpa. – respondeu Afonso, cortando ele. - Mas vamos lá, faltam poucos minutos pra começar a reunião. Ele vai dar pela nossa falta. Relaxa, é muita coincidência esse papel ter ido parar logo nas mãos dele.

- É... muita coincidência...


aguarde... amanhã, último capítulo


FOTO: http://www.faunus.com.br/Figuras/search3.jpg

segunda-feira, 2 de junho de 2008

O Papel é Mais Paciente que o Homem - Parte II

Para entender melhor a história, confira a postagem anterior, parte I.

- Seu Gomes? – disse Afonso, espantado.

- Como vai seu Gomes? – disfarçou Marcelo, enquanto pegava a carta e a jogava no colo.

- Porque o susto? – perguntou o velho, com sua voz rouca e rasgada. – Aconteceu alguma coisa?

- Não senhor. Estávamos apenas conversando sobre alguns assuntos da empresa. – respondeu Marcelo.

- Hum... sei. Com tanta coisa pra se resolver os dois pombinhos ficam de conversa pelos cantos? Eu não sou contra homossexualismo, mas aqui na empresa não se tolera relações mais intimas entre funcionários...

Silêncio. E de repente, o velhote soltou uma gargalhada. Não parecia, mas para ele, havia feito uma piada. Uma piada que Afonso e Marcelo não acharam a menor graça.

- O senhor queria nos falar alguma coisa? – perguntou Marcelo, mudando logo o rumo da conversa.

- Óbvio. – disse ele enquanto ajeitava a calça. – Achou que eu viria me ajuntar a conversa de vocês? Eu tenho mais o que fazer. Quero os dois mais tarde na minha sala para uma reunião com os funcionários do nosso setor. Será daqui á duas horas. Não ando gostando de certas posturas na nossa equipe, e já vou avisando: cabeças irão rolar.

Os dois rapazes sentiram um frio a percorrer a pele.

- Tudo bem. Estaremos lá. – respondeu Afonso.

O homem apenas emitiu um som incompreensível, e em seguida saiu da sala, ajeitando a gravata.

- Cara, eu ainda mato esse velho... – disse Afonso, agora engasgado. – Isso é piada que se faça?

- Pra você ver. To até suando. Vamos tomar uma água?

- Demorou. Nem quero imaginar como vai ser essa reunião... Cabeças vão rolar... cabeças vão rolar...

E saíram rapidamente da sala, rumo ao bebedouro mais próximo, que ficava no corredor a duas portas depois da deles. A frase de seu Gomes fora forte, e ficara por vários minutos se repetindo dentro de suas mentes, como um LP riscado.

- “Cabeças irão rolar”... “cabeças irão rolar”... “cabeças irão rolar...”


***

E após um bom copo d’água, dos dois voltaram a sala, se jogando em suas cadeiras.

- A Mari falou que ele tá planejando essa reunião há dias. Tudo porque o gerente geral reclamou dos nossos resultados.

- Engraçado né Afonso. Todo aquele meu projeto fala justamente sobre isso, sobre como melhorar os resultados da nossa equipe. Apresentar isso cairia como uma luva nessa reunião. Mas duvido que ele me deixe falar. É só ele quem fala nas reuniões.

- Pois é... Nossa, até agora to engasgado com aquela piada que ele fez. Eu devia fazer como você também. Vou escrever uma daquelas cartas pra aquele tangerina podre...

Foi então que Marcelo teve um estalo. No momento de tensão pela presença de seu Gomes e pela reunião, esquecera-se do bilhete, que até então onde lembrava, havia deixado em seu colo. Olhou para a papelada na mesa. Em seguida, olhou para o chão. O papel não estava lá. Colocou a mão nos bolsos de sua calça. Também não estava lá.

- O que foi? – perguntou Afonso, enquanto mexia o mouse do seu micro para sair da proteção de tela.

- Não acho aquele papel que eu escrevi. Tinha deixado ele no colo na hora que o seu Gomes entrou.

- Iiihhh... deixa eu ver.

E fuçaram por toda a sala, nas mesas de funcionários de outros turnos, no carpete, nas gavetas, e até nas lixeiras.

- Eu não acredito que você perdeu isso, Marcelo. Vamos lá no corredor, vai que você deixou cair por lá.

E foram no corredor até no bebedouro onde haviam parado. Algumas pessoas que passavam por ali estranhavam a atitudes daqueles dois rapazes andando de quatro naquele carpete cinza.

- O que estão procurando. – perguntou Miriam, colega de trabalho.

- Eh...

Falariam do tal desabafo ao chefe?

- É um papel que a gente perdeu...

- Por acaso seria esse aqui? Achei na porta da sala de vocês.

E no desespero, Marcelo arrancou o papel da mão da mulher.

- Nossa calma! – indignou-se ela. – Eu já ia te entregar.

E Marcelo abriu o papel. Murchou. Não era ele.

- Desculpa, é que eu preciso muito desse papel que eu perdi. O meu emprego pode estar em jogo se ele parar em mãos erradas.

- Sei. E como ele é?

- Era na verdade um rascunho. Atrás tem o símbolo da companhia.

- Ah... quase todos os papeis daqui tem a marca da companhia. Desse jeito fica difícil né... Mas tudo bem. Se eu achar alguma coisa por ai, eu falo com vocês. Com licença, preciso me arrumar pra reunião com seu Gomes.

E a moça saiu, deixando os dois no chão.

- Cara, agora eu to com medo. - comentou Marcelo. - Onde foi para esse papel?

- Onde foi eu não sei cara, mas acho melhor a gente correr porque a reunião começa daqui a duas horas. Imagina se alguém encontra esse papel ou o próprio seu Gomes o encontra por ai?

- Vira essa boca pra lá. Eu já sei o que a gente vai fazer. Vamos perguntar em todos os departamentos.

- Mas peraí, você não vai falar o que tinha naquele bilhete não é?

- Vou sim. Não tem outro jeito. Até porque, esse bilhete ia fazer um puta sucesso entre o pessoal. Ia ser muito divertido.

- Pior que ia mesmo...hehehehe... Bom, se esse é o preço que a gente tem que pagar pra achar esse bilhete, tudo bem, a gente paga. Vamos lá.

Marcelo abriu um sorriso. Mesmo com toda aquela situação, ele iria adorar mostrar esse bilhete para todos os membros da equipe. Vai ser um sucesso...


continua...


FOTO: http://timshel-driesvanba.blogspot.com/2007/12/psicose-65.html

domingo, 1 de junho de 2008

O Papel é Mais Paciente que o Homem - Parte I


Nesta semana o "Em Linhas..." completará 1 ano de vida. E para comemorar esta data tão especial, publicarei um conto com quatro partes que serão postadas de hoje até o dia 4, que mostra o que um simples desabafo no papel pode provocar na vida de uma pessoa, especialmente quando esse belo desabafo envolve o seu “querido” patrão...

Divirta-se, e acompanhe essa seqüência que promete...


Abriu a porta com fúria, fechando-a em seguida. Sentou em sua mesa, espumando de raiva.

Afonso viu o amigo Marcelo visivelmente nervoso. Não precisou pensar muito. Foi mais um daqueles dias em que levara esporro do seu patrão, Seu Gomes.

Seu Gomes era um senhor de idade. Beirava os sessenta anos, mas a sua expressão enrugada e com pesadas olheiras lhe adicionavam mais dez anos de idade. Era gordo, usava habitualmente terno e gravata, mas com a sua pressa e a sua ansiedade sempre à flor da pele, suas calças nunca paravam no lugar, e a sua gravata vivia torta e mal colocada. Por isso, já era hábito vê-lo ajeitando as calças e/ou a gravata de dois em dois minutos. Já era administrador daquele setor há cerca de cinco anos, mas seu tempo de empresa já ultrapassava os vinte. Sentia-se o máximo em seu cargo, ainda mais quando o gerente geral exaltava as suas qualidades ou as qualidades do departamento.

- Aquele imbecil não vale nada. Você acredita que ele simplesmente se recusou a ouvir o projeto que eu fiz, dizendo que quem era pago para pensar era ele e eu era só pago para obedecer?

- Imagino. O seu Gomes é casca dura, acha que só ele é que deve pensar. Mas relaxa, cara, não fica assim não...

Era o que ele sempre dizia ao amigo nessas horas. Por mais que detestasse aquele emprego e principalmente o patrão, Marcelo tinha muita vontade de trabalhar, e era uma mente criativa dentre todos que trabalhavam naquele setor.

- Aquilo ali é inveja. – dizia ele. – Ele tem medo de eu roubar o cargo dele. Essa é que é a verdade. Ele sabe que eu tenho mais competência que ele. Se você soubesse como eu fiquei na hora que ele falou aquilo... Deu vontade de falar tudo aquilo que tá engasgado na minha garganta, puta que pariu...

- Não fica assim não rapaz, faz que nem eu, em vez de ficar por ai batendo porta, xingando o chefe e com coisa engasgada só zoando com a sua saúde, porque você não pega um papel e começa a descarregar tudo que você queria falar pra ele?

- Descarregar? No papel? Em linhas?

- Sim. É melhor do que ficar espumando aí como você tá... Às vezes eu faço isso também. Foi um psicólogo que me recomendou quando eu tive aquela crise de stress. Não conhece aquele ditado que diz que o papel é mais paciente que o homem?

- Sei...

- Então. Faça isso, cara. Você vai ver como vai se sentir melhor...

Marcelo franziu a testa. Nunca tinha pensado nisso. Soava até meio que infantil para ele. Ele já tinha feito isso algumas vezes quando era adolescente, naquela fase em que os nossos conflitos viram linhas, em versos, diários ou em frases pequenas de caderno de escola. Mas já fazia muito tempo que ele não desabafava dessa forma.

- Não é uma má idéia...

***
- Pronto. Terminei.

- Posso ler?

- Pode mas lê só com os olhos.

- Beleza.

E então, Afonso começou a ler o papel.

“Querido senhor Gomes,

Venho através desta lhe confessar o quanto admiro o seu trabalho e especialmente, o quanto a empresa conseguiu ser tão burra o suficiente para pagar um salário generoso a um velho que mal sabe arrumar as próprias calças. Obvio, quem sou eu pra discordar da gestão da nossa querida empresa, mesmo que ela tenha tomado a atitude de contratar cavalos no lugar de seres humanos para setores onde seus funcionários parecem ter mais inteligência do que o seu próprio administrador. Mas tudo bem senhor Gomes, o aquecimento global está acabando com o nosso planeta, e entendo que animais selvagens como o senhor precisem de uma ajuda para sobreviver, por isso, fique tranqüilo, eu não quero roubar o seu cargo ou a sua mulher, se bem que pelo seu jeito, duvido que você ainda lembre o que é ter uma mulher, com essa cara de tangerina podre que você tem.

Pois bem senhor Gomes, diante disso tudo, apenas peço que preste mais atenção nos projetos que eu for lhe apresentar, porque não os faço para agradar o senhor, e sim porque além de querer o bem estar do nosso setor, eu não perco o meu tempo mostrando quem é que manda por aqui.”

Um abraço carinhoso de seu funcionário pago para obedecer,

Marcelo


- Nossa cara, tangerina podre foi o pior!!!! – exclamou Afonso rindo.

- Psst! Fala baixo, quer que ele escute?

- Foi mal... mas meu, você escreveu isso como se realmente fosse algo direto pra ele. Ficou ótimo. Até eu me senti vingado! Mas e aí, você se sente melhor?

- Se eu me sinto? Nossa, acho que vou fazer isso todos os dias. Vou pegar... fazer essa carta... dobrá-la e guardá-la todos os dias só pra me divertir um pouco quando quiser rir da cara dele.

- Espera aí, você vai jogar fora né? Ou pelo menos não vai deixar isso guardado por aqui?

- Porque você tá falando isso? Você acha que alguém vai ler isso aqui ou que vai chegar aos ouvidos do chefe?

- Não sei mas se eu fosse você não arriscava.

- Relaxa. Todo mundo aqui odeia ele, fora que essa carta vai ficar bem guardada. Mas jogar fora eu não jogo nem em sonho. Foi a minha maior obra prima dentro dessa empresa.

- Tá bom, você é quem sabe, mas cuidado. Você mesmo me falou outro dia que tá endividado até o pescoço e não pode nem sonhar em perder esse emprego.

- Nem me fale. Mas pode ficar tranqüilo, ela está em boas mãos.

E de repente, para a surpresa dos dois. Seu Gomes entrou na sala, sem bater como de costume. Seus olhos carrancudos pareciam a todo momento uma arma mirada para quem ele olhava, pronta para disparar o primeiro tiro.

continua...


FOTO: http://franklincarlos.files.wordpress.com/2008/03/raiva.jpg