domingo, 18 de maio de 2008

O Acervo de Daniela

Era um daqueles dias chuvosos, onde nosso próprio corpo responde pouco aos nossos movimentos. A cama se torna um pólo de gravidade que parece a todo momento nos sugar de volta para ela, onde segundo a sua própria opinião, não deveríamos nunca ter saído.

Daniela se sentia assim. Era domingo e por isso, resolvera ficar até mais tarde na cama, ainda mais depois que viu aqueles pingos na janela. Virou o rosto para o outro lado, fitou uma das portas do seu guarda-roupa cheio de adesivos. Ficou com os olhos parados por um tempo, não se sabe ao certo. Em seguida olhou no relógio: já passava do meio dia.

Levantou-se e ficou sentada na cama, ainda com os olhos naquela porta. Fazia tempo que ela não reparava nela. Como estava envelhecida, pensou ela. Aquele guarda-roupa de madeira marfim fora comprado há quase dez anos pelo seu pai. Naquele tempo ele ainda era casado com a sua mãe, e resolveu de um dia para o outro arrastar a filha para uma loja de móveis e mandou que ela escolhesse um lindo guarda-roupa para o seu quarto. E ela escolheu aquele. O tempo foi passando, e ela ganhou um lindo adesivo da Pakalolo, dado por uma amiga da 2º série. Foi o primeiro colado naquela porta, o primeiro dos vários que vieram a enfeitá-la.

E Daniela ficou de pé, dirigindo-se diretamente para aquela porta. Resolveu que, naquela manhã chuvosa de domingo, ela novamente seria aberta.

Lá havia muito papéis, como cadernos da escola, bonecas, fotos, cartas, agendas e diários. Sentia-se um pequeno odor de mofo, mas a menina pareceu não se importar, e enfiou a mão dentro daqueles pertences empoeirados.

Puxou uma caixa de fotos. Todas elas eram de uma excursão da escola para um sítio em Atibaia, datadas de agosto de 1997. A professora Leandra, de geografia, é que comandou o passeio. Em várias das fotos, amigos se exibindo na piscina os seus “músculos” de garotos de doze/treze anos, e suas amigas, a Kátia, a quatro olho; a Mari, a Chiquitita; e a Fá, a Magda do Sai de Baixo. As quatro amigas eram inseparáveis. Uma chorava no ombro da outra, dava conselhos, arranjava os esquemas com os meninos, passava cola nas provas, por fim, eram as irmãs. Irmãs que o tempo foi separando. De todas, Daniela só tinha contato com a Kátia, que já era mãe, mas mesmo assim um contato distante, via Orkut. Pessoalmente já não se viam há mais de cinco anos. Como estariam as outras meninas? Como seria se as quatro um dia se reencontrassem? Seria a mesma amizade? Ao lado das fotos, Daniela encontrou também alguns recortes de revistas com os Backstreet Boys e até das Chiquititas, a novela que ela não perdia nunca. Uma das fotos onde estava a Mili já demonstravam sinais do tempo, com algumas manchas pretas de mofo. Carinhosamente, Daniela assoprou e limpou-a com a mão, e um sorriso no rosto como quem estava cuidando de uma criança.

Guardou a caixa e os recortes, e passou a fuçar nas agendas. Numa das agendas, da sétima série, várias figurinhas das balas Fregells com conselhos amorosos, fotos de atores considerados símbolos sexuais da época, entre vários pensamentos que ela mesma colhia no seu dia-a-dia de fazia questão de deixar registrado no papel. E mais para o final da agenda, várias assinaturas e mensagens de colegas da classe, professores, alguns até já falecidos, e marcas de batom de várias cores. Achara até perdido um autógrafo que recebera da Xuxa uma vez em que ela fora com suas amigas ao Xuxa Park.

Em seguida, lá em baixo, para a sua surpresa, achara um caderno de perguntas, desses que as meninas viviam circulando pela escola, principalmente para saber coisas picantes de outras meninas e dos caras mais bonitinhos da 8º série, e é claro, também dos C.D.Fs. Ela também havia respondido o caderno, na época, com catorze anos. Até a letra era diferente. E as respostas então? Sonho quando crescer: ser dançarina do É O Tchan! Isso porque hoje ela detesta axé. E o homem ideal: Leonardo DiCaprio. E ela lá sabia o que era homem? E Daniela começou a rir sozinha, ainda mais ao ler uma pergunta “O que você faria se o homem ou mulher dos seus sonhos aparecesse na sua frente?”, e um garoto respondeu que imitaria o Michael Jackson para impressioná-la.

Veio um filme em sua cabeça. Lembrou-se das pessoas, das situações até perigosas e irresponsáveis que já viveu, como às vezes em que cabulava as aulas para ir ao shopping e dar de cara com a mãe, as brigas, as traquinagens com as professoras e com os colegas, os paqueras, os amores... Amores?

Lembrou que faltava uma parte do acervo que ela não tinha visitado. Voltou à porta, tirou alguns cadernos e revistas, e de lá do fundo, surge uma caixa de madeira. Foi com ela para a cama.

Era uma caixa com várias cartas e até fotos de alguns meninos que fizeram parte vida dela. Alguns hoje já casados, outros que tomaram caminhos diferentes, outros que tomaram caminhos errados e até já morreram, e um de nome Allan.

Allan...

Foi um namoro de quase dois anos, o mais longo relacionamento que ela já havia tido. Era um rapaz tão bonito... de feições carismáticas que encantavam a qualquer ser humano. Isso explicava o porque de tantos amigos... e amigas. Daniela se apaixonara pelo rapaz e queria que ele fosse o pai de seus filhos. Foi um lindo namoro que começou em uma das festas da escola, onde havia se conhecido. Uma semana depois, com os olhos brilhando, os dois já anunciavam oficialmente o namoro. Daí por diante, seguiu-se uma história cheia de companheirismo, cumplicidade, noites excitantes e perigosas, e muito amor recíproco.

Pena que as histórias boas duram pouco. Certo dia a família de Allan mudou-se para Ribeirão Preto, e mesmo com muita resistência, o rapaz acabou indo com a família. Ainda se falaram pelo telefone por alguns meses, até que num certo dia, Daniela conseguiu juntar dinheiro e viajou para a cidade, mas chegando lá, descobriu que o rapaz já estava namorando outra menina, e pior, a menina já estava até grávida. Foi a gota d’água. E após soltar muitas lágrimas, Daniela resolveu seguir sua vida em frente e esquecer de toda aquela história. Desde então nunca mais o viu, e nem quis mais saber dele. O tempo passou, outros amores vieram e se foram, e essa história acabou sendo mais um monte de papel mofado em dentro do seu guarda-roupa.

E de repente, como se acabasse de sair de um transe, Daniela acordou. Olhou-se no espelho. Estava com os olhos marejados. Olhou novamente para a foto de Allan, chegou a posicioná-la para rasgar, mas não o fez. Jogou a foto de volta na caixa e a guardou no acervo. Em seguida fechou a porta do guarda-roupa.

Decidiu ir tomar um bom banho, porém, ao pegar o seu chinelo, percebeu um pedaço de papel no chão, ao abrir, sentiu seu coração disparar.

Era o telefone de Allan.

E do nada, batera uma curiosidade em saber como ele estava, o que havia feito de sua vida. Já fazia cerca de seis anos que ela não o via.

Resolveu ligar. O telefone chamou quatro vezes. Quando ela ia desligar, uma voz masculina atendeu.

- Alô?

Daniela ficou em silêncio.

- Alô? Alô?

Resolveu desligar o telefone. Mesmo tendo o amado tanto, já era passado para ela. Achou melhor não voltar a mexer nessa história. Ela já não precisava mais disso.

E então, sem pensar duas vezes, jogou o papel dentro do acervo, nem olhando onde ele havia caído. Que se perdesse no meio daquele monte de passado.

E com um sorriso no rosto, fechou de vez a porta do guarda roupa, satisfeita pelas recordações maravilhosas e da nostalgia que por algum tempo a fez se esquecer do mundo.

Mas, disso tudo, o que ela mais sentiu foi um orgulho, primeiro, de ter vivido e aprendido muito com tudo aquilo, e principalmente, de ter chegado até agora, com 23 anos de idade, auxiliar de escritório, estudante de Publicidade e Propaganda na USP, fã de rock progressivo e de MPB, mas que de vez em quando ainda se aventurava a dançar e a cantar os créus da vida.

Sempre com a humildade de quem está aqui para aprender.


FOTO: http://www.shade.cc/bios/cover_eyes.jpg

13 comentários:

camilinha disse...

escrevo mais ou menos assim.
não cheguei ao fim, mas vou terminar, que bonito.
se der uma olhadinha nos meus textos mais antiguinhos dá pra reparar os estilos. :D

Anônimo disse...

muito bonito...parabéns!

Anônimo disse...

haha

adorei o tom irônico do final!

foi proposital, neh?

espero que sim...rs

um beijo

Henrique disse...

MUITO FODA!

eu tenho um envelope aqui em casa com umas cartas que os meus pais e as minhas irmãs me escreveram há algum tempo. Eu quase choro quando leio ;x


se puder visita:

www.frieiracerebral.blogspot.com

Unknown disse...

Cara... o texto é enorme, mas valeu apena lê-lo. Assim como a personagem da história, eu ando meio nostálgica, até mais do que deveria...

http://maynabuco.blogspot.com

Gabrielly disse...

Parabéns pelo teto e pelo blog,muito bons mesmo!

;*

Gabrielly disse...

*texto

Ufo Brasil disse...

parabéns

http://www.rangervermelho.blogspot.com/

Fernando Gomes disse...

infelizmente as pessoas pensam que cortar a propaganda vai fazer as pessoas pararem de beber.

Tudo bem que pode funcionar como um incentivo.. mas é como vocÊ falou..

o buraco é bem mais embaixo.

Obrigado pelo comentário no post "Mídia e Alcoolismo"

Volte sempre.
Abraços.


Comenta aí:
And I Said Goddamn!

Karla Hack dos Santos disse...

Cofesso que tenho algumas recordações das aquais acho impossível me desfazer
Cartas..
Muitas Cartas..
Presentes (até mesmos os mais insignificants!!)

Belo Texto!

;D

bjus

Jay disse...

muito bom!
é triste quando vemos amigos se separar e ficar lembrando dessas coisas, mas após um tempo, podemos ver quão proveitosos foram esses momentos, assim como Daniela fez.
muito bom mesmo

ex-amnésico disse...

Oi Danilo! Como tem passado?

Voltei à vida, depois de um longo período conservado em formol... ;)

Acabo de por em dia a leitura do Em Linhas..., apesar de não ter comentado nenhum texto: sim, eu sei que é sacanagem, mas não quis ser repetitivo. Afinal, dizer que seus textos são ótimos é chover no molhado!

Então vou comentar sobre nostalgia.

Eu não sou de ter saudade do passado sabe, pelo menos não do meu passado (que eu mal lembro): estou sempre sonhando com algo que não vivi, com algum lugar que não sei onde é. Eu nunca estou muito no aqui e agora. Desde criança, nunca estive.

Já me recriminei bastante por isso, parece coisa de fugitivo, de quem não quer enfrentar a realidade, só que hoje penso diferente. Descobri que eu "funciono" melhor assim e que, mesmo mirando numa realidade não existente, eu nunca deixo de viver a realidade, de qualquer maneira.
No final das contas, cada pessoa tem seu próprio jeito de ver as coisas e o melhor é viver de acordo; como eu digo às vezes, "tem lugar pra tudo neste mundo"... ;)

Ficou comprido, não? E o melhor é que eu não sei bem como concluir, hahaha!

Que tal: um forte abraço pra você!

Wander Veroni Maia disse...

Oi, Danilo!

VC escreve mto bem contos. Já é uma redator nato. O "Em Linhas" tem uma proposta muito interessante de caminhar entre a crônica, conto e a literatura. Adorei esse seu texto e até encaminhei o link dele para uma amiga minha que adoro contos assim.

Aqui, quero lhe convidar para visitar o meu blog, o Café com Notícias.

Abraço,

=]
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http://cafecomnoticias.blogspot.com