
Era uma cidade como outra qualquer.
Tinha a sua civilização, os seus parques, os seus prédios, as suas bocas e os seus esgotos. Tinha um aspecto saturado, com trânsito, ruas esburacadas e gente individualista e desconfiada de todos. Também era violenta.
Num certo dia, em um parque, um rapaz que descansava próximo a uma árvore viu uma estranha gota cair na grama. Levantou-se e foi até onde estava ela. Media mais ou menos dois centímetros, e possuía uma cor que variava da posição que se olhava. Ela brilhava quando olhada no lado em que estava batendo sol, e o restante estava opaca, quase cor de petróleo. O rapaz nunca tinha visto aquilo, e em pouco mais de cinco minutos, já havia um grupo de pessoas em volta daquela gota estranha, inclusive um vendedor de lanches e um gari, todas curiosas para ver o que era aquilo.
Começaram os boatos. Falaram em petróleo, substancia radioativa, ou até mesmo em sinais do apocalipse. Logo, toda a cidade estava comentando sobre a gota, que àquela altura, fora coletada por um cientista e guardada no laboratório que ficava no coração da cidade, um local teoricamente seguro. Tentou-se analisar a gota com toda a cautela possível, mas nada fora descoberto. O cientista começou a se desesperar, porque o líquido o tempo todo mudava de cor e aos olhos dele parecia muito ameaçador. Com o tempo e as tentativas de analise sem sucesso, ficara neurótico com aquela gota, e adoeceu tendo que ser internado às pressas, se afastando do caso.
Outro cientista assumiu o controle. De longe, entupido de roupas e acessórios de proteção, examinou o líquido por várias vezes e não conseguiu descobrir nada, nem a procedência, nem exatamente o que era. A sua apreensão e medo do líquido eram tantas, que num descuido, deixou cair a amostragem com o liquido no chão. Ao pôr a mão para catá-lo, cortou o dedo nos cacos. Um colega começou a gritar que fora a gota, e mesmo o cientista dizendo que não, foi desmentido. Logo, o assunto virou notícia, e já chegara ao ponto de se noticiar que a gota era maldita e que seria na verdade uma nova forma de vírus contagioso e sem cura.
E logo, o cientista foi preso, e o laboratório isolado. Um dos policiais que analisavam o local onde foi quebrado o vidro de amostragem, por descuido, escorregara e batera a perna numa mesa, chegando a sair sangue e a abrir um hematoma. Ao sair do prédio se viu no meio de uma chuva de flashes e de câmeras o filmando, e um dos repórteres dizendo que o policial também fora contaminado. Mesmo negando, o policial também fora preso e isolado do resto da população, e a gota, mais uma vez nomeada a protagonista de um possível principio de epidemia.
E daí por diante, surgiram mais boatos, onde se dizia que a região do parque onde caiu gota estava contaminada e que também deveria ser isolada. Porém, pessoas que freqüentavam o parque onde ela foi encontrada, se desesperaram imaginando que já haviam sido contaminadas. Os habitantes, com medo, passaram a lotar todos os dias os postos, hospitais e pronto-socorros da cidade, achando que qualquer machucado ou mancha que aparecia na pele já era indícios de contaminação da gota. A doença então, ficou conhecida como o “Mal da Gota”.
A noticia do “Mal da Gota” tivera muita repercussão, chegando até ao exterior. Vários cientistas do mundo inteiro, curiosos, se ofereceram para investigar afinal o que seria essa gota. Alguns chegavam a contestar essa doença, afinal até então ainda não havia provas concretas de que os sintomas causados eram devido a tal substância. Porém, com medo de mexer naquilo que estava isolado no coração da cidade, o prefeito recusou a ajuda dos cientistas e não permitiu que o laboratório fosse reaberto. Houve protestos contra e a favor desta decisão, contando até com a participação de celebridades e políticos. O prefeito manteve a sua decisão.
E devido a esse medo generalizado, pessoas começaram a desenvolver diversos sintomas e doenças como úlceras, dores pelo corpo, insônia, ansiedade, síndrome do pânico, taquicardia e entre outros. Casas, apartamentos e estabelecimentos comerciais foram postos a venda a preço de banana. E mesmo assim, poucos estavam conseguindo vender.
E com o tempo, a cidade foi se tornando deserta. O laboratório foi isolado com concreto. Estabelecimentos comerciais, bancos, lotéricas, entre outros, fecharam as portas. A cidade enfim, morrera, e junto com ela, as noticias sobre o “Mal da Gota”, que aos poucos foi caindo no esquecimento popular.
Anos depois, um cientista resolveu mandar uma equipe às ruínas da cidade, e com autorização judicial, reabriram o antigo laboratório.
No local onde havia caído o frasco, havia apenas uma marca de um líquido que não existia mais.
E então, após a uma analise tranqüila e desprendida de pré-conceitos, finalmente fora descoberto o que era: apenas resíduo de lixo, uma mistura de substâncias químicas e orgânicas, e após muita investigação da justiça, descobriu-se que no local onde fora encontrada a gota, havia um gari que terminara de limpar a região, pegou a vassoura, sacudiu para limpá-la e a guardou no lixeira. A gota viera desta vassoura. Foi comprovado também que nenhuma das pessoas que sofreram machucados, nem o primeiro cientista que “analisou” o líquido, e nem o policial que isolou o laboratório, foram vítimas dessa gota.
O “Mal da Gota”, enfim, fora desmistificado, ainda que tarde demais.
E o preço pago foi uma cidade morta.
FOTO: http://victorunico.files.wordpress.com/2006/01/Gota%20dágua.jpg